Entrevista para a Gazeta com Sebastião Salgado, Fotógrafo, 67 anos.


Após semanas de imersão na densa Floresta Amazônica para um trabalho que busca mapear as partes puras do planeta, um dos maiores fotojornalistas do mundo está relaxado. No momento, a única aparente preocupação de Sebastião Salgado é verificar como serão expostos os quadros que o filho Rodrigo pintou e que ele pretende apresentar aos amigos durante o tempo de rápidas férias na sua casa de frente para o mar, em Vitória. Quando percebe que uma das molduras está com problema, chama a esposa e braço direito dos seus projetos, Lélia Wanick. “Deve ter sido durante a viagem de Paris para cá. Mas a gente resolve”, diz Lélia.

Nas quase três horas de conversa com A GAZETA, dias antes de receber o prêmio D. Luís Gonzaga Fernandes do governo do Estado, em cerimônia no Palácio Anchieta, na última quinta, pelos trabalhos de cunho humano e ambiental que realiza, Salgado detalhou suas aventuras pelo globo, comentou sobre política ecológica e causou surpresa ao afirmar que fotografia digital é melhor que analógica. “Faz um ano que eu fotografo com câmera digital”, revelou.


Você esteve na Amazônia semana passada. No que estava trabalhando? 

No “Genesis”, um projeto em que já estou há cinco anos procurando as  partes mais puras do planeta. Estive lá no mês de março, quando passei 40 dias com uma tribo de índios, ao norte do Rio Amazonas, chamada Zo?é. Tenho viajado o mundo inteiro buscando essas partes mais puras para o projeto em que fotografo a paisagem e, pela primeira vez, os outros animais. Porque até então eu só fotografei o animal humano. Estou fotografando os seres humanos que nós fomos até alguns milhares de anos atrás.


Quando você passou com “Genesis” por Vitória, em 2006, muitos acreditaram que já era o final do projeto. 

Não. Ali foi o começo. Aqui em Vitória não tinha ainda nenhuma foto de  ser humano. Eu tinha feito Galápagos, o Virunga, que é um parque nacional entre o Congo, Uganda e Ruanda, a Península Valdes, na Argentina… Hoje estou com 22 histórias feitas. Estou muito próximo do  fim.


O que essas pessoas que vivem em estado puro têm a mostrar para nós? O que você pretende mostrar? 

O “Genesis” nasceu em Aimorés (MG), com a Lélia, minha esposa. Criamos o Instituto Terra quando passamos a ter um contato muito forte com a natureza. Então, é praticamente como meu último projeto como fotógrafo. Estou com 67 anos. Concebi esse trabalho como uma homenagem ao planeta. Decidimos identificar as partes puras do planeta, no sentido de ajudar a preservá-las.


Você já tinha feito algum trabalho nesse sentido? 

É a primeira vez. O que é interessante nessa questão dos grupos é que,  na realidade, descobrimos muito pouca coisa nesses milênios. Os Zoés têm uma ideia perfeita da degradação do ambiente deles. Eles exploram um pedaço de terra um período e abandonam, porque ela tem uma queda de produtividade. Quando voltam àquele ponto, já se passaram 100 anos. Eles conhecem perfeitamente o antibiótico. Se eles têm uma ferida, sabem como tratar. Eles têm remédio para tudo. Quando você vai trabalhar em um grupo desses descobre que o que é essencial para eles é essencial para você.


Eles têm consciência de que o resto do mundo estaria destruindo a natureza? 

Não. Depende do grupo. Para os Zoés, o planeta é constituído de 275 zoés e alguns brancos que aparecem por lá. A Lélia estava tentando explicar para os índios o que é um avião, que é muito grande. Ela disse: “O avião é mais ou menos desse comprimento e dentro você pode colocar 300 pessoas”. E eles perguntaram: “Como trezentas pessoas? Nós só somos 275″. Pois é, mas tem muito mais gente na cidades. Para eles, chegar nesse conceito de 300 pessoas é muito difícil.


Como é para você, um homem urbano, viver esse conflito de tempo, identidade e sociedade? 

É muito interessante. Eu tenho uma oportunidade de frequentar cortes representativos de sociedades que estão em várias idades. Eu estava trabalhando com um grupo em Sumatra, e também os bushmen, no Botswana, que é um grupo de caçadores e coletores que vivem exatamente como viviam há cinco mil anos.


É uma viagem no tempo… 

Uma viagem maravilhosa. É quase uma fotografia antropológica. Posso  dizer que tem horas que faço uma viagem no tempo, no Velho Testamento. Você vai vendo as diferenças no que diz respeito aos humanos, aos outros animais. Comecei o “Genesis” na Ilhas Galápagos porque li um pouco a “Teoria da Evolução das Espécies”, do Charles Darwin. Fui para lá para tentar compreender o que ele compreendeu. Eu ia de barco de ilha em ilha. As tartarugas galápagos evoluíram de maneira diferente de uma ilha para outra. Para mim está sendo uma escola fabulosa.


Quando você chega a uma comunidade, qual é o tempo que você tem de contato para começar a fotografar? 

Isso não tem regra. Pode ser imediato, pode ter um tempo de discussão e de explicação. Isso para os humanos. Para os outros animais, às vezes você precisa de tempo. Lembro uma tartaruga gigante em Galápagos, na Ilha Isabela. Eu tive que aprender a fotografá-la. Posso tirar uma foto e ir embora. Mas, para eu fazer uma foto direitinho, para eu poder fotografar esse animal de perto, tenho que ter uma aproximação. Ele tem que me autorizar a entrar no território dele. Tive de encontrar uma forma para poder fotografar as tartarugas, e a única forma foi me colando de joelhos, na altura dela. Ela veio se aproximando de mim e eu comecei a andar devagarinho para trás. Ela compreendeu que eu estava respeitando o território dela. A partir daí ela veio direto, se aproximou, começou a me olhar. Eu respeitei a distância, a dignidade e pude trabalhar sem problemas. Quando isso acontece, você começa a ver que contaram uma mentira imensa, que nós somos o único animal racional. Todos são racionais dentro da racionalidade deles. E você descobre que está num planeta integrado, autodependente. E nós, como animal que dominou, não vemos, não respeitamos. Nós destruímos o habitat, dominamos, executamos. A nossa urbanização é uma expulsão.


Você acha que conseguiríamos mudar isso com políticas públicas? Isso é utópico? 

De forma alguma. Quando começamos nosso projeto ambiental na região do Vale do Rio Doce, ninguém acreditava. Os fazendeiros sentavam no banco para rir da gente, para gozar. O Brasil vai mudando. A nova geração vai obrigando a mudar.


Por que não é fácil mudar? 

Porque ecologia nunca foi política e nunca foi considerada dentro do orçamento de nada, de ninguém. A mata, até então, era considerada lugar a evitar. A mata foi um lugar do qual as pessoas aprenderam a ter medo. Até pouquíssimos anos, desenvolvimento e progresso era destruir a floresta.


Você disse que algumas etapas do “Genesis” vão para a internet. Como você lida com esse ambiente? 

É complicado para mim. Te juro. Voltando desde a base… Faz um ano que eu fotografo com câmera digital… Até então era com negativo. Agora, minha imagem passa a ser um conceito, que está ali dentro transformado em ondas magnéticas. Eu tenho um telefone novo com internet. Eu fui mexendo, fui no Google, coloquei meu nome e cliquei em imagens. Minhas fotos entraram dentro do meu telefone. Pronto! Eu não sei fazer outra vez, mas fui brincando até chegar lá. Isso é fascinante, mas é muito difícil para uma pessoa que trabalhou sempre com um produto resultado da química, que é o filme, passar a usar um produto resultado da física.


O que fez você passar a usar tecnologia digital? 

O mundo depois do 11 de Setembro virou um drama para os fotógrafos. Nós usávamos filmes e tínhamos os raios-x nos aeroportos. Eu vinha de  Sumatra no ano passado, no mês de abril. Passamos por sete controles de aeroportos com 600 rolos de filme. Tive problemas em vários deles. Não adiantava mostrar para eles as cartas da Kodak, dos governos… Eu  reaprendi a fotografia. A digital me facilitou a vida. Estou usando uma  Canon EOS-1Ds Mark III, que é fabulosa.


É um susto para muita gente ver você falando que a digital é melhor… 

É melhor mesmo. Os químicos não existem mais. Tive que fazer os bons  químicos até um ano e pouco atrás. Para conseguirmos papel para as cópias de leitura, tínhamos que trazer de Tóquio! Os filmes foram caindo de qualidade. E a qualidade que eu tinha em um 35mm anos atrás eu não tenho mais no médio formato agora.


Com a popularização das digitais, mudou a relação da sociedade com a imagem? 

Nada. Absolutamente nada. O número de fotógrafos não aumentou, não  melhorou e não piorou. Você só mudou a base, exclusivamente a base. O problema é de sensibilidade e identificação com a profissão, de saber se é fotógrafo ou não.


A câmera digital altera a questão da memória? 

Acho que não. A fotografia, na realidade, é a memória da sociedade. São cortes representativos, são momentos que você faz da sociedade. É a verdadeira linguagem universal. A maneira de escrever cada um tem a sua, com uma vantagem para a fotografia. Ela não precisa de tradução. É realmente uma linguagem fabulosa.


Perfil 

Carreira. Sebastião Salgado nasceu em 1944 em Aimorés, Minas Gerais. Estudou Economia na Universidade Federal do Espírito Santo e tornou-se um dos maiores fotojornalistas do mundo, tendo seus trabalhos “Êxodos” e o atual “Genesis” como referência fundamental na fotografia. Também trabalhou nas principais agências de fotografia do mundo, a Magnum e a Gamma.Instante. Em 1981, Salgado ganhou fama mundial após ser o único fotógrafo a registrar a tentativa de assassinato do então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan.Viagens. Em Paris, Salgado mantém a agência Amazonas Images, pela qual percorre diversos cantos do mundo em trabalhos que investigam a relação do homem com o trabalho e a natureza e povos em diferentes níveis de sociedade.
Natureza. Doutor em Economia pela Universidade de Paris, é casado com a arquiteta Lélia Wanick, com quem mantém o Instituto Terra em sua cidade natal, buscando a recuperação ambiental da região.Leia mais trechos da entrevista de Sebastião Salgado
Você tem hora que está no Alasca e em outros momentos nos pólos. Me parece acostumado a trabalhar em temperaturas extremas…


Exato. Eu estive até o final de abril no Amazonas e depois passei um mês na França e nos Estados Unidos. Depois fui 50 dias no Alasca e depois do Alasca para aqui para completar esse material. Eu tenho viajado no mundo inteiro buscando essas partes mais puras para o projeto onde eu fotografo a paisagem e, pela primeira vez, os outros animais. Porque até então eu só fotografei o animal humano. Estou fotografando os seres humanos que nós fomos até alguns milhares de anos atrás. Na realidade, nós vivemos ainda. Existem centenas de grupos que vivem da mesma forma que vivemos há milhares de anos. Os Zo?és, do Amazonas, vivem como os índios daqui viveram há cinco mil anos.

Como você faz o mapeamento das tribos que irá visitar?

Nós temos uma equipe. Eu trabalho muito com o Patrimônio Mundial da  Unesco. Temos uma equipe em Paris que trabalha na pesquisa. Trabalho com várias instituições, a UNEP (United Nations Environment Programme)… A gente vai coordenando uma série de informações com vários outros fotógrafos. Eu vou seguindo a filosofia do projeto. Os pontos que a gente  identificou no início eu fiz, mas tive que adaptar outros. É um projeto de oito anos que deve terminar em 2011.

O Genesis apresenta também um trabalho educacional, que, inclusive, foi mostrado em Vitória, em 2006. Isso continua?


Nós tivemos uma dificuldade grande. Aqui em Vitória houve facilidade porque o patrocínio da CST (Arcelor Mittal) nos fez atingir mais de 100 mil crianças. Precisamos outras localidades como parceiras. E nós nunca conseguimos. Esse projeto foi aplicado depois por alguns governos, como na província da Friuli, na Itália. Vitória foi o piloto. Agora está na Austúrias, na Espanha.

Mas por que outros governos não apoiam? Porque é caro?


É caro. A gente criou um kit para cada um dos professores, com exposições, apostilas, um guia pedagógico… A Unesco era parceria e ainda é. Na época, nós tivemos com o Ministro da Educação, o Cristovam Buarque. Mas o governo não tinha o dinheiro  para entrar no projeto. Agora, estamos adaptando o projeto para ser lançado pela web gratuitamente.

Como é para você, que é um homem urbano, viver esse conflito de tempo, identidade e sociedade?

É muito interessante. Na realidade, eu tenho uma oportunidade de frequentar cortes representativos de sociedades que estão em várias idades. Eu estava trabalhando com um grupo em Sumatra, e também os  bushmen no Botswana, que é um grupo de caçadores e coletores que vivem exatamente como viveram há cinco mil anos. Eles vivem da caça, não conseguem plantar nada. Para eles, o conceito de agricultura não existe. Eles extraem da natureza o que a natureza dá para eles. Eles vivem no Deserto de Kalahari e são capazes de tirar raízes que dão água suficiente para um grupo de oito a dez pessoas beberem durante um dia. Eles conhecem o que pode comer ou não, como a cobra pica. Eles conhecem a natureza como a linha da mão deles. Eles ainda têm uma varinha  que com três ou cinco segundos eles preparam o fogo. Andar com eles em janeiro, na época de chuva mostra que eles fazem um abrigo em poucos minutos antes da chuva cair. Depois você vive com o grupo do Sumatra. Eles também são caçadores e coletores, mas já estão domesticando a agricultura. É claro que eles não vão ter essa oportunidade porque a oportunidade que nós tivemos vem de seis a dez mil anos de poder domesticar as plantas e animais. Mas é fabuloso quando você vive com um grupo que está domesticando. E tem uma fruta, o durian, que é tipo uma jaca menor. Eles já estão começando a plantar o durian. O sentido da propriedade já começa a aparecer. Já os bushmen não têm propriedade, não têm chefe, religião, não têm estrutura de família A mulher tem filhos de pais diferentes. Você tem uma relação de aproximação de um ser com o outro que depois desmancha. Mas não tem essa estrutura de família como   gente começou a ter há alguns milhares de anos, que também foi introduzida com a ideia da religião. Depois você passa para o grupo do Sumatra. Eles já tem um conceito de religião, que já esta nas coisas. Você tem um deus na natureza que você tem que honrar. Por exemplo, eu queria caçar macacos com eles. Eles disseram que para eu poder ir eles tinham de pedir autorização aos deuses. Mas quais deuses? Deuses da plantas, do vento… Eles têm que caçar um porco do mato numa cerimônia, que, na realidade, é uma captura. Eles trazem o porco do mato e sacrificam. E eles pegam uma parte perto do intestino do porco e colocam contra o sol e leem se eu posso caçar com ele ou não. Ali que a natureza vai dizer. E para eles não tem um deus que vive no firmamento. É o vento, as árvores… Mas tem um deus.

Você pôde caçar com eles?

Eu pude. Ele autorizou. O durian, que é a fruta, eles já pegam um fruto que cai debaixo da árvore. A muda cresce e eles levam a muda  para um lugar e doam a muda para o filho. Quando o filho estiver adulto, a árvore vai estar adulta. Quando o filho estiver com 50 anos aquela árvore vai estar com 40 metros de altura. A árvore é dele. E se for plantada num lugar, mesmo na porta de uma outra aldeia, ninguém da outra aldeia mexe porque a árvore tem já um proprietário. Eles estão num processo de domesticação do durian. Quando eles vão caçar o porco é fabuloso. Eles são muitos estritos nas relações sexuais. Eles vivem numa enorme casa na floresta. De um lado, os homens e de outras as mulheres. Os meninos, a partir do momento que a mãe deixa de dar o leite, passam a viver com o pai. As meninas vão com a mãe. Mas eles têm casas dentro da floresta, que é tão densa e úmida como a Amazônia, e essas casas que são chamadas casas de porco… É ali que eles estão domesticando os porcos. É ali que ele vai com a mulher e lá que tem relação sexual. É fabuloso. Eles têm uma palmeira que eles retiram a base de alimentação deles dela. Eles moem, ralam o centro dessa palmeira e retiram uma farinha e com isso fazem o correspondente ao pão. É quase igual ao nosso beiju. Eles cortam o interior dessa palmeira para tratar dos porcos. Eles tem uma casa alta e jogam aquela comida para o porco. Mas nessa hora eles pegam um bambu e fazem um buraco e batem fazendo um som. Os porcos ouvem e vêm e eles dão comida para os porcos. E um grupo distante também faz e atraem outros porcos. Assim, eles começam a domesticar.

Você se emociona…

É fabuloso. É fabuloso. Uma vez em Galápagos, eu vi um albatroz voltando de viagem, porque eles viajam uma semana e voltam. Eles têm uma grande capacidade de se manter no ar. Mas são péssimos para aterrissar. Eles se embolam, saem cheio de poeira. E ele veio andando para a namorada dele. Uma cena maravilhosa! Ele vem dançando. Ela vai dançando. Eles se aproximam. Não se tocam, voltam atrás, roçam a beira da asa, voltam. Uma cerimônia que dura meia hora. Até que tem um momento em que eles tocam o bico. Mas quando tocaram o bico, ele se mandou de um lado, se escondeu e ela também. Aí eu perguntei ao guia o que ouve. “Ele acabou de descobrir que não era a namorada dele”. É muito fabuloso. E eles são fiéis a vida inteira. Ele descobriu que estava fazendo uma traição. Foi um drama! Tão fantástico. Você podia ir lá pegar, passar a mão. Ele estava chateadíssimo (risos). Isso você vê quando trabalha com os outros animas. A gente não está seguro da nossa sobrevivência. Hoje, com esse aquecimento global, com o extermínio de floresta e uma série de coisas que está acontecendo, uma série de vírus, de bactérias que nós não dominamos, o conjunto hiper-grande nas grandes cidades de uma espécie só está gerando uma série de desiquilíbrios. É uma série de indicadores de que a coisa não está funcionando direito. Possivelmente estejamos em instância de sermos expulsos do planeta. O planeta está começando a se livrar da gente para ele viver em equilíbrio. Se a gente compreender isso e voltar a viver em comunhão com o planeta, você tem uma possibilidade grande de se reintegrar e viver.

Sobre o desmatamento, muita gente saiu do Espírito Santo para explorar o sul e o norte do Brasil…


A primeira destruição foi no sul do país. O Paraná era constituído de floresta. As pessoas saíram daqui e destruíram lá e depois foram para o  norte. Antigamente, quando eu era criança, se alguém passasse na sua  cidade e se você perguntasse para onde estava indo, dizia que estava indo para o norte do Espírito Santo. Quando eu era criança, eu viajei de  Linhares para São Mateus, com 15 ou 16 anos. Você tinha que acender a  luz do carro  quando passava pela estrada dentro da mata durante o dia. O norte era todo coberto de floresta. Meu avô saiu da nossa região e foi para o norte. Ele morreu em São Mateus de febre, de malária. No norte, isolado, impossível de atingir. Essa foi a primeira destruição. e depois foram migrar para o Paraná. E depois para o norte efetivo do país. Eu espero que hoje a gente dê essa paradinha. Porque tem um dado que as pessoas precisam conhecer. Hoje, para fazer um hectare de terra, para garantir que as espécies estarão lá, com uma árvore com seis ou sete anos de vida, custa 22 mil reais. Quando você vai na Amazônia, isso deve ser a maior reserva de capital do planeta. E as pessoas vão para o norte do Brasil e destrói isso com o gado. Para você só tirar o retorno da floresta que você destrói, são necessários 100 anos de exploração. A gente não está falando do ecossistema das aguas, de todo o equilíbrio da floresta, que vai dar muito mais do que 22 mil reais. Não tem cabimento destruir o que é capital das gerações futuras. O que a gente já fez é mais do que suficiente para sustentar o povo brasileiro e exportar para o mundo inteiro. Você tem que preservar, manter. Isso é um ponto que as pessoas vão compreender muito rápido.

Como a Europa, local que não têm muitas florestas mais, vê essa questão do meio-ambiente?

Esse conceito de fronteira já mudou muito. Eles sabem que uma poluição gerada em Chernobyl, na Ucrânia, afeta o planeta inteiro. E que o sequestro de carbono feito por uma floresta em Sumatra sequestra o carbono da França também. Essa ideia do globo é muito mais global hoje, não só na tecnologia e no financeiro. No sistema ecológico também. Essa ideia começa a a aparecer muito clara. Em vez de destruir para criar emprego, você vai receber fundos para ecoturismo. Lembro que iam fazer uma enorme siderúrgica no sul do Espírito Santo para gerar três mil empregos diretos. Mas ninguém fez o cálculo do número de hotéis que têm na região. E que cada hotel emprega dezenas de pessoas, táxis, mercados, pescadores… São dezenas de milhares de empregos que seriam eliminados para serem criados três mil. Felizmente houve um movimento no Estado e todo mundo abriu o olho e viu que era verdade. Aquilo ia beneficiar os proprietários da siderúrgica, os financistas, um banco, um grupo pequeno. Ao passo que a indústria hoteleira e turística distribuem renda. A gente ia passar por um processo de destruição ambiental, de emprego e concentração de renda. Felizmente, mantivemos isso e salvou ecologicamente um área.

A sua esposa viaja sempre com você?

A Lélia vai sempre. Ela é a peça mais fundamental em toda a a nossa vida.

Você parece muito fã dela.

A gente vive junto desde 1964. Ela é de Vitória, da Praia do Suá. Ela é arquiteta. Ela tem um gosto muito especial, fino. Ela desenhou praticamente todo os os meus livros. Ela é curadora das minhas exposições. Ela é organizadora. É importante que ela venha ver, para sentir, para construir, para poder fazer e participar. São coisas tão maravilhosas. Tenho que compartilhar. E passou tudo tão rápido. 45 anos foi outro dia! A gente namorava de mãozinha dada na Praia do Suá, quando ainda tinha bonde. Para você ir para a cidade você ia de bonde. Quando você passava por ali, na Avenida Vitória, era mato. O bonde passava na mata.

Camburi então… (risos)

Camburi era um outro mundo. Era mato total. Nós tivemos meio século  de vida juntos trabalhando juntos. Fomos para a Europa juntos. Fiz doutoramento em economia em Paris. Fiz mestrado em São Paulo e graduação na Ufes. Nessa época ela era pianista. Ela fez conservatório em São Paulo. Ela dava concertos em São Paulo. Quando foi para Paris, ela estudou arquitetura, depois abandonou a arquitetura para a fotografia. Mas ela continua. Estamos montando uma mega-exposição em Tóquio agora. A gente abre no dia 22 de outubro, no Museu de Arte Metropolitana. Ela vai para lá montar. E trabalha junto com o curador do museu. Em maio ela montou uma em São Francisco para abrir um centro cultural em Berkeley. Ela monta as exposições no mundo inteiro. E ainda dirige o Instituto Terra.

Tenho uma curiosidade: O que você costuma ouvir, ler…


Eu tenho um iPod de 60 gigas que tem mais ou menos uns 800 CDs completos. Levo tudo. Onde eu viajo levo minhas músicas. Ouço música  brasileira. Adoro música clássica. Todos os países que vou eu procuro as músicas interessantes. Leio muito, principalmente porque estou muito dentro de avião. Em relação ao cinema, eu vejo também. Eu tenho um filho, que faz cinema. Tenho outro filho, o Rodrigo, que tem Síndrome de Down, que é pintor. Estamos ligados ao mundo da imagem. E a Lélia é uma das melhores diretoras artísticas que conheço. Ela tem capacidade visual e gosto fino. Estamos dentro do movimento da imagem.  A imagem é nossa vida.

E como você vê o prêmio que recebeu no Espírito Santo. Qual a sua relação com a cidade?

Eu estou muito feliz. O Espírito Santo para mim é de uma importância capital. Eu sou mineiro de Aimorés. Quando eu saía da minha cidade, eu não ia para Belo Horizonte, a gente vinha de trem para Vitória porque durava quatro horas. Para BH durava dois dias. E Vitória naquela época tinha só 120 mil habitantes. A gente tinha república de menino da roça, de Aimorés, Baixo Guandu, Colatina, Baunilha. A gente se juntava em república ou pensões. Vitória para mim foi o desabrochar da vida. Eu vim sozinho. Minha família ficou. Eu tinha 16 anos. Aqui eu eu me casei e aqui eu tenho nossa casa. Quando tiramos férias na França é para cá que a gente vem. Eu comprei essa casa porque o meu colega de faculdade do outro lado, o Carlos Alberto Lessa, indicou. Eu vou receber o prêmio e sei que minha turma vai estar toda lá. Vitória é tão bom. Tão bonito. E eu conheço esse Estado como a linha da minha mão. Quando eu era estudante no Salesianos eu viajei o Estado inteiro de Kombi. Matamos aulas. E depois, na época da faculdade, a gente era militante de esquerda e viajava o Estado vendendo o jornal Brasil Urgente. Depois eu queria casar e fundamos uma empresa de exportação de madeiras. Comprava jacarandá. Vitória é minha casa. Sou um mineiro capixaba. Acho isso fabuloso. Eu saí de Vitória para São Paulo em 1967, aos 23 anos. Mas o essencial da minha formação aconteceu aqui. Aqui conheci a Lélia. aqui aprendi francês. Fui Secretário da Aliança Francesa. A gente se conheceu lá. Os amigos de força fiz aqui. (O senador Gerson) Camata foi meu colega de pensão. Morei com grandes amigos na casa da Dona Zaíra Braça… Os meus primeiros passos foram em Vitória. A gente cresceu junto.